A comunicação, o desenvolvimento democrático e o golpe de 1964

Sem a transmissão das informações entre pessoas e culturas não haveria sociedade humana como entendemos. Foi no século XIX com a revolução industrial que a comunicação deu um salto tecnológico e surgiu o que atualmente é conhecido como comunicação de massa.

 Política e Comunicação   Abril 15, 2024

A comunicação, o desenvolvimento democrático e o golpe de 1964

Por:

mdo José Augusto Camargo

A importância da comunicação no desenvolvimento histórico e cultural da humanidade é indiscutível. Sem a transmissão das informações entre pessoas e culturas não haveria sociedade humana como entendemos. Não obstante a comunicação ser uma atividade milenar foi no século XIX com a revolução industrial que a atividade deu um salto quantitativo e tecnológico impressionante e surgiu aquilo que atualmente é conhecido como comunicação de massa.

Pré condições da comunicação de massa

Inicialmente dois aspectos são importantes para o incremento das “trocas comunicacionais” ao lado das comerciais; a extensa malha ferroviária surgida no século XIX, que o historiador Hobsbawn qualifica como “o esforço de construção pública mais importante já empreendido pelo homem” que tem início na Inglaterra por volta de 1850 e se espalha pelo globo até os primeiros anos do século XX. O segundo desdobramento tecnológico da revolução industrial que favoreceu as comunicações foram as linhas telegráficas, seguido do telégrafo sem fio, do fonógrafo e do cinema até chegar, nas primeiras décadas do século XX, ao rádio.

A isto se soma o crescimento da população, da urbanização, da alfabetização e, pouco lembrado mas essencial neste processo, o aumento relativo da renda dos operários e da classe média que permitiu um consumo para além das necessidades básicas, o que beneficiou os produtos da nascente indústria cultural. No que diz respeito diretamente a informação os jornais nos dão um bom exemplo deste avanço; novamente utilizando os dados colhidos por Hobsbawn ficamos sabendo que em 1788, nos EUA, foram publicados mensalmente 330 mil exemplares de jornais e que em 1880, entre jornais e revistas, estes números chegaram a 186 milhões. No século XX a comunicação de massa se consolidou a partir destas “mídias”, desenvolveu e aperfeiçoou novos equipamentos, processos e técnicas racionais de comunicação.

Neste ponto se faz necessário esclarecer que, em relação às big techs, apesar de se auto denominarem “empresas de tecnologia”, no que diz respeito às atividades de mensageria, redes sociais, serviços de e-mail e propaganda elas devem ser equiparadas às demais empresas de mídia que exploram serviços assemelhados. O não reconhecimento desta realidade fatual gera não só problemas de enquadramento legal e tributário como pode configurar, no âmbito empresarial, concorrência desleal devido à completa desregulamentação da internet e a sua concentração. Isto não quer dizer que estas empresas não atuem no setor tecnológico, mas sim que no que diz respeito a estas áreas específicas elas se apresentam formalmente como prestadoras de serviços de mídia.

As mídias contemporâneas

As mídias modernas em suas diversas formas são centrais para a informação da população. Um cidadão típico, em linhas gerais, inicia sua formação cultural em casa na primeira infância aprendendo uma língua, a partir de mais ou menos 5 anos de idade passa a frequentar uma escola, recebe educação formal até por volta de 20, 25 anos, isto em se tratando da minoria que ingressa no ensino superior pois grande parte não chega a completar este ciclo.

Passada esta idade são os meios de comunicação de massa (ou as mídias) que assumem a tarefa de socializar, informar e formar a visão de mundo do cidadão, ou seja, dois terços da vida de uma pessoa decorre sob a influência formadora dos meios de comunicação e não de instituições oficialmente criadas para a tarefa. Tendo em vista que a mídia é controlada por empresas que pela lógica comercial servem a seus interesses particulares e políticos, e a presença dos serviços públicos é menor neste campo, a questão da comunicação se reveste de importância central e deve ser objeto de atenção do Estado em uma sociedade democrática.

No entanto, parece que as ditaduras têm mais clareza deste fato do que as esquerdas democráticas. Não é por acaso que os regimes autoritários se esforçam para controlar a informação apelando para o uso da censura e da perseguição – e mesmo da eliminação física em casos extremos – daqueles que se propõem a contestar este controle.

O caso brasileiro

A ditadura brasileira implantada em 1964 seguiu esta política de controle pela violência mas sua leitura sobre o fenômeno da comunicação tinha certa sofisticação, o projeto era modernizar e controlar. Este controle se deu também para além do trabalhador rebelado e recaiu sobre as empresas de comunicação (poucas) que se voltaram contra esta política oficial. Enquanto alguns veículos eram favorecidos outros foram perseguidos e acabaram fechando suas portas estrangulados política e economicamente pela repressão.

A reação das forças democráticas foi a criação daquilo que conhecemos como imprensa alternativa que marcou as décadas de 1970 e 1980. No entanto, durante o período democrático estas experiências foram minguando e desapareceram, nenhuma daquelas publicações se consolidou economicamente e se tornou sustentável. Situação causada não só pela violência da ditadura mas em grande parte pela crise econômica e a inflação descontrolada que marcou o período pós-ditadura.

O fato é que ditadura militar desarticulou toda uma nascente indústria nacional do jornalismo e seu mercado impedindo o desenvolvimento dos veículos de comunicação ao perseguir os profissionais progressistas e seus veículos, reduzindo a oferta de notícias aos poucos núcleos conservadores e seus oligopólios, resultando em um quadro pouco alentador para a comunicação nacional (o que é facilmente constatado pela emergência do movimento de democratização da comunicação).

A chegada da internet

O surgimento da internet, ao contrário do que se supunha inicialmente, não se configurou como um momento de ruptura deste modelo histórico. As empresas tradicionais economicamente mais sólidas estão aptas a realizar uma transição para o novo modelo de negócio digital (exemplo da Folha de S. Paulo com o UOL e a Globo na TV por assinatura e no streaming) e minimamente fazer frente a entrada das big techs que monopolizam e controlam as redes sociais obrigando jornalistas e demais profissionais da comunicação a se voltarem para ações alternativas na internet, reproduzindo sob nova roupagem a experiência da imprensa de oposição à ditadura. Como aconteceu outrora, grande parte destes arranjos são inviáveis economicamente ou dependentes tecnologicamente de soluções estrangeiras a qual ficam atreladas.

A verdade é que a internet não se desenvolveu, na prática, como um modelo revolucionário de comunicação, mas sim como uma espécie de continuidade do modelo de controle da comunicação se caracterizando como uma “Fase superior do controle autoritário das mídias”, motivo pelo qual precisa ser regulada pelo Estado e não simplesmente abandonada às forças do mercado.

O que fazer?

Aqui se trata apenas de elencar possibilidades de maneira genérica os caminhos já existentes no ordenamento jurídico afeitos à regulação pública sem qualquer julgamento de mérito; a) Lei abrangente em forma de Estatuto como existente em outras esferas sociais, o que significa tentar abarcar a totalidade dos aspectos envolvidos em determinada mídia; b) Leis e normas pontuais e específicas, inclusive com sanções penais, e c) Agências reguladoras ou conselhos (autarquias especiais) onde se desenvolveria na prática a regulação (note-se que o objetivo é o controle público/estatal e não mecanismos privados de autorregulação).

O importante é ressaltar que seja qual for o método adotado a regulação da mídia e da internet em particular ele precisa, dada a sua centralidade na sociedade contemporânea, ser entendida como uma atividade que envolve aspectos éticos, o que nos leva, inclusive, à ideia da existência de Comitês de Ética em Informática.

Inicialmente qualquer regulação deve ser alicerçada em alguns princípios:

  • Proteger a democracia impedindo a disseminação de notícias falsas, desinformação e manipulação;

  • Combater o monopólio, a concentração dos meios e promover a pluralidade das vozes sociais e a cultura local;

  • Cumprir a função social dos meios segundo a Constituição e

  • Criação de emprego e renda para os trabalhadores do setor atentando para a questão do direito autoral na internet.

Além desta regulação legal é bem-vinda a existência de esferas sociais que acompanhem, avaliem e proponham alternativas e soluções sobre o tema aos órgãos públicos pois sabemos que o desenvolvimento tecnológico avança mais rapidamente que a capacidade regulatória do Estado. É preciso fomentar o debate contínuo na sociedade civil, na academia e entre profissionais do setor para avançar na procura de soluções para o controle democrático e legal das diversas mídias em seu processo de desenvolvimento.

Ainda temos lacunas no que diz respeito a regulação dos meios tradicionais de comunicação e já surge o novo desafio da internet. A conclusão é que existe muita coisa ainda a ser feita no setor da mídia visando uma regulação democrática, mas a boa notícia é que já existe uma movimentação da sociedade neste sentido.

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Este texto foi apresentado no encontro 60 anos pós golpe militar - reflexões sobre os caminhos da comunicação no Brasil, realizado no auditório do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo no dia 11 de abril de 2024 com curadoria da jornalista Shellah Avellar

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