Sacrificando as palavras em holocausto

Massacre, crimes de guerra, genocídio; a Palestina sendo ofertada no altar da história (na imagem de abertura uma antiga gravura que recria um altar onde se ofereciam animais em holocausto)

 Política e Comunicação   Março 7, 2024

Sacrificando as palavras em holocausto

Por:

mdo José Augusto Camargo

Em declaração dada durante visita à Etiópia no dia 18 de fevereiro o presidente Lula afirmou que mulheres e crianças palestinas estavam sendo mortas pelos soldados do governo de Israel comandados por Benjamim Netanyahu. Imediatamente, com o objetivo de desviar a atenção sobre o que Lula abertamente pretendia discutir, a balbúrdia midiática se estabeleceu e teve início uma debate para saber se o presidente do Brasil teria usado o holocausto como referência para o sacrifício dos palestinos comparando-o com sofrido pelos judeus durante a II Guerra Mundial, também houve quem se perguntasse se o termo poderia ser utilizado em relação a povos não judeus ou associado a ações que não fossem perpetradas exclusivamente pelos nazistas.

A palavra holocausto já existia antes do surgimento da ideologia nazista e portanto não se destina unicamente a nominar aos horrores infligidos ao povo judeu por ordem de Adolf Hitler nos campos de concentração. Até porque o objetivo do Estado alemão era exterminar também ciganos, homossexuais, deficientes e mesmo comunistas, o que efetivamente fizeram mas em menor número.

Os dicionários etimológicos ensinam que holocausto vem do grego holos, que significa inteiro, totalidade e kaustikós, queimar (a mesma origem de verbo cauterizar em medicina). Portanto, holocausto significa destruir completamente algo pelo fogo e a palavra se refere diretamente aos ritos religiosos onde as oferendas são incineradas (palavra latina que significa reduzir a cinzas).

A associação do ritual do holocausto aos povos hebreus acontece ainda na antiguidade pelo costume destas tribos de realizar oferendas a Deus queimando o corpo de animais em um altares seguindo o mandamento da Torá, o livro sagrado. É bastante conhecida a passagem bíblica (Gênesis 22:1-19) onde Deus pede a Abraão que em vez de ofertar um cordeiro em holocausto que ele ofereça seu filho único, Isaque. No último momento um anjo detém a mão assassina de Abraão e um cordeiro ocupa o lugar do jovem. Em reconhecimento à obediência de Abraão Deus abençoa a ele e a toda sua descendência (ele geraria outros filhos e morreria centenário). Esta é a origem do mito de que o povo judeu seria o escolhido por Deus.

Certamente muitos já viram em filmes cenas de um funeral viking onde o corpo do guerreiro é queimado junto com seu barco para que ele possa chegar ate Valhalla. Recentemente, em 25 de fevereiro, um soldado da Força Aérea dos EUA ateou fogo ao próprio corpo em frente à Embaixada de Israel em um ato onde se ofereceu em sacrifício a causa do povo palestino. Em uma foto famosa, tirada em 1963 em Saigon (Vietnã do Sul), se vê um monge budista sentado no chão com o corpo em chamas em protesto contra o governo que perseguia a religião budista. Lato Sensu podemos afirmar que estas ações são holocaustos.

No entanto, a imprensa noticia estes atos como autoimolação. Acontece que o verbo imolar significa oferecer em holocausto e vem do latim immolãre, que era a prática de cobrir as oferendas com uma espécie de farinha antes de sacrificá-las, portanto, imolação é parte da cerimônia do holocausto.

Limitar o significado de holocausto a algo intrínseco a um único fenômeno histórico, um evento datado ou, relativo exclusivamente apenas a um povo ou cultura é reduzir a amplitude do conceito. Apenas como curiosidade, lembremos que a simbologia do fogo como elemento de sacralidade está presente na tradição hindu, budista, maia em diversas outras culturas.

É verdade que após a II Guerra Mundial, com a revelação dos horrores da política de limpeza étnica dos nazistas, o holocausto deixou de ser visto pelo senso comum como uma prática religiosa primitiva e uma ação individual ou de pequenos grupos e passou a ser associado a totalidade dos judeus assassinados nos campos de concentração onde eram mortos em câmaras de gás mas tinham seus corpos incinerados em fornos crematórios, adquirindo uma dimensão coletiva.

A alteração de significado iniciais ou acréscimo de sentidos a um termo antigo é um acontecimento comum, afinal as palavras também tem sua história. Ainda mais em nossa sociedade fortemente influenciada pelos veículos de comunicação de massa onde os sentidos da linguagem podem ser manipulados, ressignificados ou distorcidos ao sabor de interesses políticos, econômicos e comerciais não sendo incomum que estes “novos significados” se incorporem a linguagem popular e passem a ser “dicionarizados”. Aliás, faz parte do trabalho da publicidade e do marketing elaborar slogans, frases de efeito e a fabricar modismos utilizando-se de termos populares de forma “criativa”.

O fato de um conceito ou ideia ser entendido de uma forma particular por um grupo não impede sua correta análise e uso qualificado por parte de outros. Ou, valendo-se dos ensinamentos de Émile Durkhein para melhor compreensão; “Ainda estamos por demais acostumados a decidir todas as questões de acordo com o senso comum para que possamos mantê-lo facilmente a distância nas discussões sociológicas” (Regras do método sociológico, prefácio).

Lula não é doutorado em ciências sociais mas sendo um político genial, inteligente e perspicaz – talvez o maior deste período – compreendeu perfeitamente a situação que se desenrola na faixa de Gaza (e também na Ucrânia) e reinterpretou a célebre frase do general Clausewitz “A guerra é a continuação da política, por outros meios” fazendo das armas da sua diplomacia política a guerra pela conquista da nova ordem mundial visando consolidar o Brasil como uma das lideranças do chamado Sul Global.

Escrito este texto, após as necessárias pesquisas, esclareço que o objetivo não é apresentar uma falsa erudição, mas usando certa dose de ironia se valer do significado da palavra holocausto para concluir que o debate público sobre a guerra na faixa de Gaza é muito mais emocional do que racional, baseado no senso comum, impressões pessoais, leituras ideológicas ou religiosas que por sua vez ignoram o desenvolvimento histórico do conflito e o contexto da geopolítica mundial.

Qualquer um pode concordar ou não com o que foi aqui exposto (talvez algum sionista até se ofenda), mas a questão realmente central é que o presidente Lula não disse holocausto; disse genocídio. E, como sabemos, tipificar o genocídio é muito mais fácil, aliás, isto já foi feito pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, em sua Resolução n. 96 (I) de 11 de Dezembro de 1946. Por esta resolução ficamos sabendo que genocídios são “atos, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”, algo difícil de negar que esteja em curso na Palestina.

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