No dia 6 de janeiro, incentivado pelo presidente Donald Trump dos EUA através das redes sociais, um grupo de seus apoiadores invade o Capitólio, a sede do congresso americano. Passada a aventura, dias depois o Twitter suspende permanentemente a conta de Trump (que possuía 88 milhões de seguidores) “devido ao risco de mais incitação à violência” e sob a alegação de que desrespeitava as regras da rede social. Em seguida foi a vez de Mark Zuckeberg, do Facebook, tomar medidas restringindo o acesso do presidente à sua conta no que foi seguido também pelo Instagram.
Política e Comunicação Janeiro 14, 2021
Por:
José Augusto Camargo
No dia 6 de janeiro, incentivado pelo próprio presidente Donald Trump dos EUA através das redes sociais, um grupo de seus apoiadores invade o Capitólio, como é conhecido a sede do congresso americano. Passada a aventura, dois dias depois o Twitter suspende permanentemente a conta de Trump (que possuía 88 milhões de seguidores) “devido ao risco de mais incitação à violência” e sob a alegação de que desrespeitava as regras da rede social. Em seguida foi a vez de Mark Zuckeberg, do Facebook, tomar medidas restringindo o acesso do presidente à sua conta no que foi seguido também pelo Instagram. Fica registrado aqui que se trata do mais um episódio da “crise digital” que assola a sociedade contemporânea.
A crise digital – ainda que o termo careça de uma conceituação mais precisa – é o resultado da contradição entre a utopia de ser a internet uma rede descentralizada, aberta a todo tipo de público, livre de controle estatal ou econômico e de âmbito mundial e a realidade onde poucos grupos transnacionais sequestraram todos estes sonhos e impõe sua lógica de controle sobre as mais diversas esferas sociais. Manifestações desta crise digital podem ser vistas na questão das “fake news”, na influência política eleitoral exercidas pelas redes sociais, na evasão fiscal do comércio eletrônico que atua em um país e praticamente não recolhe impostos na localidade, na precarização trabalhista promovida pelas plataformas de comércio eletrônico entre outras situações impactadas pela digitalização da informação.
Mas voltemos ao caso da suspensão das contas de Donald Trump. Ao comentar o ocorrido, Kevin Roose, colunista do New York Times, apresenta aquilo que seria o embasamento legal das decisões; “Durante anos, altos executivos das empresas de mídia social trataram Donald Trump com luvas de pelica, justificando como podiam a razão de ele ainda ter permissão para postar em suas plataformas, apesar de violar suas regras repetidas vezes”.1
Para uma parte dos analistas a questão se resume a este aspecto e ponto. Mas, para outros, o problema é mais delicado pois trata-se de delimitar o campo de poder das redes sociais uma vez que atitudes como esta são vista por muitos como uma forma de censura. O debate neste ponto adentra o campo da filosofia do direito; seria lícito a uma plataforma interditar o conteúdo postado por terceiros? Uma vez que esta atitude seja legítima, quais os parâmetros que embasam a decisão? E seus limites? Estaríamos frente a um caso típico de abuso de poder e força, ou isto seria justificado pelo interesse social e público envolvido? As redes sociais foram invadidas por opiniões e análises neste sentido e, para os interessados, segue um artigo que aborda (e resume) o debate jurídico (leia AQUI).
Entre integrantes do campo progressista e da esquerda em geral o problema assume nítidos aspectos políticos onde, para além das normas legais, se soma a preocupação com a concentração econômica, os oligopólios midiáticos, a manipulação, o controle da informação exercido pela rede e o papel que cabe aos estados democráticos de legislar e regular a situação. Aqui as posições também se dividem entre aqueles que viram com bons olhos a iniciativa e os que apontam riscos de uma escalada autoritária por partes das empresas. Um resumo deste debate pode ser lido AQUI.
Aprofundando a análise, Martín Becerra, em texto publicado no site argentino elDiarioAR, elenca 5 pontos, ou problemas, que a seu ver devem nortear a reflexão neste caso2:
1) Cassa a palavra de uma parcela significativa da opinião pública;
2) Impede que os demais segmentos da sociedade conheçam esta opinião;
3) Torna as plataformas mediadoras e controladoras do debate público;
4) As redes sociais assumem para si funções de controle que, a princípio, é do estado e
5) As plataformas passam a assumir, em nome da celeridade na resolução dos problemas, substituir a esfera pública nestas decisões.
O bloqueio das contas do presidente norte-americano pelo Twitter teve, sem dúvida, o mérito de apresentar ao grande público um debate que era até então objeto de atenção basicamente de um grupo de especialistas no tema. No caso brasileiro ele se reveste de uma certa peculiaridade, uma vez o nosso presidente se esforça ao máximo para imitar o presidente deles e é de se esperar reflexos da medida também por aqui, ao menos entre a direita local.
Devemos considerar que, a rigor, o interesse das Big Tecs é resolver a polêmica da maneira mais rápida possível para deixar tudo como sempre foi, ou seja, que o universo das redes sociais se mantenha longe de qualquer forma de intervenção pública ou estatal. Claro que, a cada novo escândalo ou problema de ordem pública que envolve a internet fica mais difícil para Mark Zuckerberg e companhia esconder a crise digital em que mergulhamos e manter intacto o atual modelo de gerenciamento e governança desregulada que caracteriza a rede mundial de computadores.
Após anos de protesto de setores progressistas, ironicamente, é Donald Trump e a direita que mostram ao público leigo a necessidade de se promover reformas no modo de funcionamento da internet. A fase de descontrole geral da rede pode estar se aproximando do final uma vez que estamos testemunhando uma série de contestações ao atual modelo de organização da internet. A reação pode ser vista em países da Europa e mesmo nos EUA, berço das grandes empresas do setor, até o Brasil se inscreve neste movimento geral ao estabelecer o Marco Civil da Internet, a Lei Geral de Proteção de Dados, sem falar na CPI das Fake News.
Deve ficar claro que enxergar o conflito de interesses deflagrados pela crise digital apenas como uma oportunidade política de enfrentamento imediato ao poder constituído limita o debate. A solução efetiva para o problema deve se buscada para além da questão jurídica, uma vez que não se trata apenas do estabelecimento pontual de novas leis, tampouco se limita apenas a reduzir o poder econômico, ou melhor dizendo, combater o verdadeiro cartel em que se transformaram as empresas globais da internet. Resta que a solução do enigma das redes sociais (e do impacto da internet em geral com a digitalização da informação) só pode advir de uma alteração profunda na lógica econômica que anima setor. A superação da crise digital em que mergulhamos e que traz implicações ainda desconhecidas em diversas esferas da vida social e política, necessita de uma verdadeira revolução com medidas estruturantes e não apenas soluções pontuais.
Participando deste amplo debate elenco três questões que, uma vez implantadas, apresentam o mérito de estabelecer uma base propícia para o desenvolvimento de alternativas para superar a crise digital em curso.
1) Criminalização do tráfego de dados digitais – As informações obtidas, sejam diretamente pelo cadastro do internauta ou obtidas pelos algoritmos, são de propriedade pessoal sendo a empresa apenas depositária dos mesmos. Venda, uso para outros fins que não os precípuos da plataforma à qual o internauta se associou, repasse a terceiros, ou qualquer outra atividade econômica que envolva o uso dos dados sem a autorização expressa do usuário simplesmente deve ser considerado crime. Não resta dúvida que esta medida impactaria a forma como as empresas se organizam com seus algoritmos para dominar/manipular desde nossos mais simples desejos de consumo até a consciência individual de cada cidadão.
2) O espaço virtual como bem público – A esfera intangível por onde circulam os dados digitais deve ser considerado um bem público, sendo sua exploração econômica alvo de controle e regulação por órgãos públicos. Não se trata aqui de submeter o usuário individual à rigidez de registros e protocolos, mas sim submeter as big techs a um instrumento legal adequado. A exemplo do que ocorre com o espaço aéreo onde algumas situações são de uso livre (por exemplo o voo de asa delta), enquanto outras (abertura de um aeroclube) necessitariam de licenças, acompanhamento rigoroso e controle por parte de órgão públicos, a internet precisa ser organizada segundo a lógica de concessão e direitos de uso, e não como propriedade privada. Esta ideia apresenta também uma abertura de ordem fiscal para o poder público pensar a taxação do setor digital e de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC) uma vez que devido à variedade e complexidade dos serviços prestados nem sempre o enquadramento econômico e jurídico está claramente identificado nas diferentes empresas.
3) Sistema internacional de governança – Para que este novo ecossistema digital seja viável e eficiente torna-se necessário uma governança internacional com instituições mundiais, além, naturalmente, dos órgãos locais de controle. Apenas a título de exemplo, experiências neste campo já existem, no caso da comunicação, pode-se citar a União Internacional de Telecomunicações (UIT) e a Comissão Interamericana de Telecomunicações, mas existem outras entidades semelhantes. Esta medida soa como óbvia tendo em vista que a internet é, por princípio, uma rede mundial que, dada sua natureza tecnológica não se limita aos espaços geográficos das nações. Inclusive, no Brasil, já existe o Comitê Gestor da Internet, que engloba governo e amplos setores da sociedade civil, o qual poderia muito bem ser parte deste sistema global de governança da internet.
Estas propostas por si não solucionam todos os dilemas envolvidos naquilo que se apresenta como “crise digital” e seus desdobramentos políticos e econômicos mas propiciam a base estruturante de uma nova lógica de organização e funcionamento para o setor. Claro que estas medidas devem ser aperfeiçoadas, detalhadas e amplamente debatidas por governos, técnicos, pesquisadores e pela sociedade civil de maneira ampla e não serão de fácil implantação pois contrariam diversos interesses estabelecidos. A partir desta revolução modernizante a internet deixaria de ser vista apenas sob a lógica individualista do usuário/consumidor para adquirir uma dimensão verdadeiramente pública e universal, realizando o sonho democrático que animou a internet em sua origem, tornando-se uma plataforma para o pleno exercício da cidadania, ou talvez, da futura utopia da cidadania digital.
___________________________
1Reproduzido pelo jornal O Estado de S. Paulo, página A15, 9 de janeiro de 2021
2 O texto pode ser lido aqui: https://www.eldiarioar.com/opinion/trump-bloqueado-facebook-twitter-democracia-perturbada_129_6734974.html